domingo, 12 de outubro de 2014

Nozze pazze


Três anos de casamento. Dei um google agora pra saber de que são essas bodas e o oráculo me respondeu: trigo ou couro. Vamos de trigo, então. Nada mais apropriado neste ano, em que o marido tem tirado do forno os melhores pães desta cidade - à qual, por sinal, foram esses mesmos pães que nos trouxeram.
Fui catar as fotos do nosso casamento pra fazer uma postagem comemorativa, e fiquei nostálgica e pensativa. Casar é muito bom. Só acho que o povo tem pirado cada vez mais com a função toda de casamento. Vejo a complexidade das festas, a neura das noivas, o custo da brincadeira toda, e fico assim:


Por isso, quis fazer um texto bridal (mentira, não quis. Existe expressão mais besta do que "bridal"? Ninguém fala groomal no universo casamenteiro, porque é esperado que só a noiva perca tempo pensando em chatices como a tipografia dos convites e a combinação de tonalidades entre as flores e os vestidos das madrinhas). Minha ideia, na verdade, foi matar um pouco a saudade daquele dia espetacular, e de quebra, dar uns conselhos para casamentos lindos, divertidos, memoráveis e $em fre$cura:

1. Evitem o Brasil.
Existem duas razões principais para essa primeira recomendação: a) só com o preço que custa alugar um espaço bacaninha pro evento por aqui, dá pra pagar a brincadeira toda, e se bobear, até um pedaço da lua de mel em lugares mais amigos do seu bolso; b) casando em outro país, o casal automaticamente se livra de ter que bancar a comilança daqueles parentes que não encontram desde os oito anos de idade e aqueles colegas de trabalho desagradáveis que riem sozinhos das próprias piadas e não tiram o som do teclado do celular. Esse pessoal não vai se despencar até o outro lado do mundo só pra reclamar da comida e pedir pro dj tocar do you wanna dance, né?
Claro que fazendo um casório internacional, pode ser que muitas pessoas queridas e amadas não consigam comparecer, o que é realmente uma droga. Mas planejando com antecedência, os mais chegados têm tempo de se programar, então sugiro combinar com os amigos do peito de seis meses a um ano antes - e só chamar os indesejados quando faltar um mês pra festa.
Nota: nós não fizemos exatamente assim, visto que decidimos casar meio que de repente. Diz o Hugo que o pedido partiu de mim. Eu contesto essa versão, mas por outro lado, não me lembro dele se ajoelhando e me oferecendo um anel ou coisa parecida. Enfim, era o Piemonte, e havia muito Nebbiolo envolvido na nossa rotina, de modo que minha memória do período não é muito precisa. E na verdade, pouco importa. O fato é que resolvemos, de comum acordo, casar por lá mesmo, no começo do outono.

2. Envolvam o máximo possível de pessoas na organização.
Sem essa de jogar tudo nas costas da noiva, coitada. O negócio é recorrer às amizades, à família e até mesmo a estranhos de boa vontade. No nosso caso, ninguém escapou de dar uma força, recrutamos geral, sem a menor cerimônia. Foi mais ou menos assim:
Na nossa chegada à região, havíamos feito couchsurfing em uma vinícola, até encontrarmos nosso apartamento. Ainda não falávamos nada de italiano, e nossos anfitriões dominavam o inglês em igual medida. De modo que nossa amizade nasceu de uma constante e inesgotável oferta de comida e bebida, da parte deles, e de um constante e inesgotável entusiasmo em comer e beber, de nossa parte. Ficamos amigos e expressamos um vago desejo de contrair matrimônio ali, até o final daquele ano. Também compartilhamos nosso objetivo de viver no campo e criar porcos. Tudo isso em itanglês, claro. Daniele, nosso anfitrião, não só nos ofereceu o salão de festas e o vinho da azienda dele (mediante ajuda na vindima, dentro de alguns meses), como também nos apresentou a um criador de porcos e à Rossana, dona do agriturismo bucólico onde passaríamos a viver.
Escolhemos Horácio e Jurema ainda bebês, mas não pudemos criá-los porque o Hugo foi passar uma temporada trabalhando em Mônaco, e eu não estava disposta a ser mãe solteira dos dois porquinhos. De modo que eles ficaram no seu lar original, sendo engordados para o grande dia. Melhor assim, senão eu poderia ter me apegado às criaturinhas, hesitando em me deliciar com sua carne macia e saborosa e cravar meus dentes em sua pele crocante.
Antes de Mônaco, o Hugo trabalhou numa trattoria em Bra, e foi de lá que saíram os gnocchi e a sobremesa que ele mesmo preparou no dia de casar. Sem essa de dia do noivo, tá pensando o quê? O meu não só cozinhou tudo, como matou e assou os porcos, que causaram bem mais comoção do que a própria noiva aqui ao adentrarem o salão.
Naquele verão, colhi uvas até criar bolhas em todos os dedos das minhas duas mãos, me bronzear da maneira menos uniforme que eu alguma vez vi e ganhar uma corcunda que durou duas semanas, mas valeu a pena: casamos ao ar livre, ao pé de uma colina tapada de parreirais, no cenário mais bucólico e poético que se pode associar à Bella Italia, na época mais fotogênica do ano, regados por garrafas e mais garrafas de Nebbiolo, Barbaresco, Arneis (e Barolo pra mesa dos noivos). E o que é melhor: totalmente de grátis. 
Cornell, um colega e amigo americano, conduziu a cerimônia como ordained minister que era, com um texto charmoso, engraçado e comovente a um só tempo. Ele até arriscou algumas palavras em português, que adquiriram um ar semipornográfico em razão de equívocos de pronúncia. Nosso padre seria visto mais tarde rebolando até o chão com a gravata amarrada na testa, e escapando furtivamente do salão para trás de uns arbustos acompanhado de um convidado.
Kunal, meu colega indiano, ficou responsável pelas fotos, que ficaram lindas, espontâneas e originais. Hoje eu fico orgulhosa em ver imagens captadas pelo amigo que registrou meu casamento nas páginas da Vogue India e outras publicações de prestígio.
Giovanni, italiano namorado da amiga croata Anita, cuidou da música, até sua amada tentar atravessar uma porta de vidro que escapou à sua atenção, o que, somado ao vinho, causou o abandono prematuro das pick ups pelo dj, que foi ao socorro da pobrezinha. Sem problemas, todo mundo passou a se alternar na seleção das playlists dali em diante, e Anita ficou bem, passado o susto.
Minha mãe levou meu vestido, meus sapatos, minhas joias, minha lingerie e boa parte da decoração da festa na mala que voou com ela do Brasil. Nunca entendi como coube tudo lá dentro. Pombas, corações e letras feitas de tecido pendiam do teto, cartões com versos românticos foram deixados em cada mesa, flores que compramos juntas na feira daquela manhã enfeitavam todo o ambiente. Ela, minha irmã e minha vó, em algumas horas, deixaram o salão e o altar no jardim parecendo aqueles pinterests de casamentos inspiradores no campo. E as três eram as mulheres mais lindas e pontuais da festa depois de passarem o dia na função.
Ah, o vestido: fiz à distância, com a mesma estilista que fez o da minha formatura, Karen Raissa. Minhas medidas não haviam mudado, fizemos alguns skypes pra eu explicar mais ou menos o que tinha em mente, e dois dias antes da cerimônia ele chegou, perfeito, bem como eu tinha imaginado.
Minhas colegas Cris e Anita me maquiaram e me pentearam na casa delas. Fiquei bem bonita, (modéstia à parte e muito graças ao talento das meninas com as escovas e pincéis), mas nem um pouco montada, o que foi ótimo: não deu remorso nenhum nas horas de chorar, dançar, suar e me descabelar. E eu não fiquei parecendo O Corvo depois de tudo isso.

3. Misturem pessoas muito diferentes entre si.
Irmão e amigos queridos do Hugo foram desde Lisboa, amigos nossos da época de Londres foram também, uma amiga do Brasil que estava morando em Barcelona conseguiu aparecer, minha mãe, meus irmãos e meus avós voaram de Porto Alegre, e meus colegas, reunindo umas 20 nacionalidades diferentes, compareceram em peso, além dos italianos acolhedores e generosos que vinham fazendo parte da nossa vida ali e que fizeram aquele canto do mundo ser o lugar onde nós escolhemos passar esse momento único das nossas vidas.

4. Relaxem, divirtam-se e não tentem controlar tudo como se fosse um balé.
Aconteceram bizarrices de todo tipo em decorrência da multiculturalidade e da abundância etílica. Uma amiga brasileira se apaixonou por uma amiga americana, só que esta não gostava de meninas. Em vista disso, a apaixonada roubou e escondeu a bolsa do objeto de sua afeição, esperando que isso convertesse a opção sexual da musa. Incrivelmente, a estratégia não surtiu o efeito esperado.
Um amigo conseguiu a proeza de beber muito mais (e muito mais rápido) do que todos os presentes, o que o levou a beijar ardentemente uma colega minha no meio da festa. Na frente da esposa dele. Que a propósito, estava grávida. Antes disso, ele virou amigo de infância do meu avô. Até hoje eu gostaria de saber sobre que eles tanto conversavam.
Outro amigo, por alguma razão, levou embora o resto do bolo no carro que havia alugado, bolo este ornado com diversas figuras do mundo gastronômico feitas de açúcar, em homenagem aos noivos glutões. Ele deve ter dirigido com a maior perícia, visto que na manhã seguinte, ao acordar, encontrei-o, de óculos escuros e cara de ressaca sôfrega, limpando diligentemente com um pano úmido um milho em miniatura que derretia pra dentro da saída do ar condicionado.
Minha vó foi a convidada que mais dançou, meu vô me levou pelo braço ao altar (na verdade, eu que arrastei o pobrezinho, andando a passos largos e resolutos), e meu recém consagrado marido tinha aquele olhar que faz uma noiva saber que não tem como não ser muito feliz dali em diante.
Assim tem sido.

domingo, 21 de setembro de 2014

A difícil arte de botar alimento dentro de casa (com estilo)

De segunda a sexta, no horário comercial, visto variações de short, camiseta, meias e havaianas. Não varia muito, na verdade.
Hoje, um domingo, de manhã cedo - chovia -, saí da cama para ir à feira. Agora que tenho tempo, resolvi virar rata de feira orgânica e cozinhar todos os dias pratos saudáveis, coloridos e perfumados. Virei habitué do Parque da Água Branca e da feirinha do Ibira. Descobri o significado das palavras catalônia e escarola. Sinto-me ótima.
Mas voltando a hoje: vesti uma gabardine, tirei os copos de leite de dentro das minhas belíssimas galochas, calcei-as e saí flanando pelas ruas sobre a minha Berlinetta, imperturbável apesar dos pingos que insistiam em atingir meus olhos e deixar meus cabelos iguais aos da Monica naquele episódio de Barbados.
Na certa, todo motorista que passou por mim, retornando da balada para um dia de dolorosa ressaca em casa, vendo faustão, deve ter ficado admirado pela minha elegância sartorial matutina.
Vi alguns corredores com números grudados nas camisetas vindos da direção do parque. Supus que uma prova estivesse se encerrando e fui em frente. Meu itinerário envolvia atravessar o Ibirapuera para sair na rua da feira. Uma vez lá dentro, vi ainda mais competidores. Muitos mesmo dessa vez. Evitei o portão onde a concentração parecia ser maior, fiz um desvio para sair no seguinte. Desci da bici pra evitar um atropelamento e segui. Logo constatei que TODAS AS PESSOAS que estavam no parque naquele horário eram competidoras, e pareceram achar estranhíssima aquela criatura de gabardine e bicicleta retrô zanzando ali no meio com cara de parva. De natureba estilosa pra peixe fora d'água em tempo recorde.
Logo percebi que meu desvio não fora boa ideia. A multidão só aumentava, e na verdade eu estava andando precisamente em direção à pista de corrida. Subestimei a competição, acreditando que do portão para fora eu estaria livre e a salvo, mas o locutor do evento logo fez o favor de informar que estávamos na MAIOR MARATONA DE REVEZAMENTO DA AMÉRICA LATINA. A avenida estava toda bloqueada para os atletas, com aquelas grades separadoras se estendendo até onde meus olhos podiam enxergar. A única forma de atravessar seria por uma passarela cujo acesso era uma longa escadaria, evidentemente tomada por um povo colorido e numerado que exalava endorfina e carboidrato em gel.
Que jeito? Botei a Berlinetta no ombro e subi, arfando a partir do 5º degrau, sujando de lama minhas coxas e minha capa de Inspetor Bugiganga, trombando nos transeuntes com meus pedais e recusando educadamente toda a ajuda oferecida por gente solidária (ou só mortificada com a minha inadequação e o meu sacrifício, mesmo).
Cheguei ao outro lado, no canteiro central da Pedro Álvares Cabral, e DE-SES-PE-RO: as tais grades estavam literalmente por tudo, eu não via saída. Estava, mais uma vez, ENCURRALADA. Pensei nos meus momentos de angústia trancada no banheiro dias atrás e lá busquei forças pra me desvencilhar de mais essa armadilha do destino. Hesitei, mas não teve jeito: arredei uma grade e atravessei a pista principal, correndo e empurrando a magrela, tomando todo o cuidado pra não atrapalhar os corredores (a essas alturas, eu já devia ser a suspeita nº 1 pra suceder aquele padre irlandês maluco que esmagou o sonho do Vanderlei Cordeiro na Olimpíada de Atenas. Minha indumentária parecia no mínimo tão ameaçadora quanto a dele).
Consegui, enfim. Liberdade, ainda que tardia. Finalmente, eu faria minha feira. Pedalei tranquila enquanto meus batimentos cardíacos voltavam ao ritmo normal, fiz uma lista mental de beterraba, agrião, couve-flor, ovos felizes, tralalá, quase lá e... A FEIRA - EXCEPCIONALMENTE - NÃO ESTARIA ACONTECENDO NO DIA DE HOJE. Quis sentar no meio fio e chorar um pouco, sabe?
Mas engoli o choro e fui até a B.LEM comer um pastel de feijão.
Senti-me ótima, enfim.

quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Aquele sobre sonhos, que eu fui buscar no Purfa

a interpretação dos sonhos

Não sou muito de sonhar. Raramente lembro o que sonhei, e quando lembro, normalmente vêm imagens desconexas, desprovidas de sentido; penso nelas ao acordar, mas enquanto leio o jornal tomando café, já esqueci...
Nos últimos dias, isso mudou: à noite, meu cérebro tem produzido historinhas cheias de simbolismo, e eu tenho trocado as palavras cruzadas matinais pela decifragem do meu universo onírico, subitamente enriquecido!
Hoje mesmo, acordei me lembrando de tudo: eu passava um tempo em uma prainha bem primitiva, paradisíaca, com um grupo. Um sujeito desse grupo era um poço de arrogância, um desses urbanóides multiconectados e hiperconsumistas, que se sentia muito superior àquele lugar e às pessoas simples que viviam ali. Era um cara hostil, e atacava um local com deboches, xingamentos e bolinhos de areia (sim, bolinhos de areia, oras). O local, que não era bobo, revidou e saiu a tocar muita areia na nossa casa. Eu, que estava na varanda, fui praticamente soterrada, mas em vez de entrar na guerra de bolinhos, fui falar com o meu colega boçal, que a essas alturas estava bem alterado, com muitas facas nas mãos, os olhos arregalados, injetados de sangue, um horror. Eu falava e ele ia apontando facas pro meu pescoço, mas eu continuava falando, irreconhecivelmente diplomática. Meu discurso era bonitinho, politicamente correto, falava de respeito, das virtudes daquele lugar, daquelas pessoas, da simplicidade. Corta. Pula pra uma cena em que eu acordo, na mesma prainha. Agora já não é mais uma viagem, eu me tornei moradora. Na mesma cama, dormindo comigo, um ex-namorado com quem eu um dia fiz planos na linha de "um amor e uma cabana". Na vida real, esses planos e mais uma série de coisas me encheram de aflição e eu encerrei a história de uma hora pra outra. No sonho, eu paguei pra ver, e ali estávamos, nós e nossa cabana. E a mesma aflição de alguns anos atrás. É como se eu finalmente enxergasse o que poderia ter sido (coisa que muito especulei) e percebesse que não era aquilo que eu queria. O resto do sonho, basicamente, era eu chorando escondida em cenários de babar.
Abri os olhos e me pus a encaixar as peças: o seboso aquele? Era eu. Era meu lado roots, singelo, praiano, dialogando com o meu lado urbano, complexo, sofisticado e um tanto metido. Passei boa parte da minha vida pensando que teria que optar por uma margem do rio, e há pouco me convenci de que o legal é nadar livremente, e me deixar levar pela correnteza de vez em quando. É poder estar hoje no Rosa, de chinelo e biquíni, e amanhã em Londres, em uma cozinha estrelada, e achar as duas experiências igualmente deliciosas. Não à toa a conversa foi tranquila e positiva no sonho - no mundo concreto também imperou a harmonia, finalmente. A parte do meu amor do passado foi redentora: um aval sobre as escolhas que eu fiz. Não andava mais pensando nisso, mas alguma parte do meu subconsciente devia estar precisando desse "selo de garantia".
Esse foi só mais um de uma série de sonhos curiosos que eu ando tendo. No divã, ouvi que era característico dessa fase de finalização do tratamento (sim, estou a um passo da alta, e não é só porque eu vou me mudar pro outro lado do oceano!) sonhar, e nos sonhos ver muitas das conclusões às quais nós chegamos nos últimos anos. Faz sentido.
Também se compreende essa minha sanha interpretativa em dias de casa vazia e nostalgia à flor da pele. Tudo remete à partida, ao porvir, às memórias... Tudo isso é muito bom. Até chorar de saudades - reais ou antecipadas - é maravilhoso. É vida! Cada vez mais bonita.

Aquele sobre a aventura de correr na orla de Salvador durante as obras na Barra

Da ladeira da Barra ao Cristo, quem corria, não corre mais: faz parkour. Aquele esporte em que os atletas suam para percorrer a distância mais difícil, inusitada e perigosa entre dois pontos tem tudo pra desbancar o stand up paddle entre os amantes da endorfina que se exercitam nas imediações da Baía de Todos os Santos.
Começa na altura do Yacht Club, onde é de bom tom estacionar possantes em cima da calçada, enfileirados e com a menor distância possível entre retrovisor e muro do cemitério. Iniciantes treinam o equilíbrio ao percorrer - sem morrer ou sofrer qualquer tipo de amputação - a fina linha entre o estacionamento improvisado e os ônibus que descem a ladeira como se fugissem da praga (todo motorista de ônibus em Salvador é um piloto de F1 frustrado. E quem não é?, penso eu ao ouvir o zunido de Ferraris que descem a mesma ladeira como se Monte Carlo fosse aqui).
A chegada ao Porto da Barra serve pra mostrar que tudo nessa vida é uma questão de perspectiva. Se no mês passado essa era a área mais apinhada e difícil de percorrer do trajeto, hoje não passa de zona de aquecimento para a corrida com obstáculos que se inicia na altura da curva do Hospital Português. Desviar dos habitués que andam trôpegos pelas calçadas, e contornar os dançarinos de ocasião que empinam a retaguarda ao som de Psiricos e assemelhados é fichinha. Ultrapassar a legião de ambulantes que vendem periguetes 3 por 5 é mo-le-za. The real deal começa mesmo logo à frente, onde as obras de revitalização da orla alteraram drasticamente trânsito, paisagem e hábitos da Barra.
Nos últimos metros que antecedem a pista de parkour, fica claro que a área agora é 100% health & fitness. Basta constatar que os dois estabelecimentos que antes lotavam nos dias ensolarados, especialmente no pôr-do-sol, oferecendo fartura de cervejinhas, caipirinhas, bolinhos fritos e vasta escolha de carne vermelha, hoje estão às moscas. Quem insistir em se refestelar nas gorduras saturadas e calorias vazias, que pelo menos tenha a vergonha na cara de caminhar até ali, já que estacionar na Barra is so last season...
O timing para o lançamento da pista esportiva não poderia ter sido melhor pensado: assim que as temperaturas começaram a cercar os 36 graus antes das 8 da manhã, e o sol deixou de dar trégua para dias nublados e chuvas aleatórias, a prefeitura inaugurou esse espaço alternativo. Simultaneamente, ativou os bicicletários do itaú, em sincronia suíça. O resultado não poderia ser diferente: a população soteropolitana de todos os bairros, de Amaralina às Cajazeiras, de Brotas a São Cristóvão, veio conhecer a estupenda inovação. Ou pelo menos é essa a impressão que se tem ao atravessar o trecho entre Hospital Português e Correios com um espaço que não chega a 2m para a circulação de pedestres, corredores, ambulantes e as benditas bicicletas cor-de-laranja.
Aqui, a nova elite do parkour nasce e cresce a olhos vistos, e eu me orgulho em fazer parte dela! Meu desempenho nesse feriadão tem sido impressionante: só ontem, pulei alternadamente as pedras de concreto que prendem ao chão as grades de isolamento da obra, dei uma cambalhota por baixo das mãos entrelaçadas de um casal, saltei um isopor de cerveja (em movimento), subi o parapeito do calçadão pra desviar de uma legião gringa, me pendurei em um galho de árvore calculando a queda - em pé - sobre o guidom de uma Salvador bike, rastejei sobre uma tela plástica e escalei uma metálica. Houve alguns lances de corpo-a-corpo, particularidade do parkour soteropolitano, esse parkour-maroto, parkour-arte. Nessas horas, apesar dos choques contundentes e do conseqüente intercâmbio de suor, o que prevalece é a camaradagem do esporte (se bem que eu posso ter sido xingada de maluca alucinada por um ou outro passante, evidentemente desprovido de espírito esportivo).
Cheguei ao Cristo feliz, energizada, e com escoriações leves.
Segui correndo até o Rio Vermelho, mas a adrenalina já não estava à flor da pele. Intuo que a administração pública tenha isso em mente, e portanto esteja testando alternativas itinerantes de entretenimento à beira-mar. Na altura do Morro do Gato, três motos da PM cobriam a pista de ponta a ponta, cada qual tripulada por dois GI Joes, trabalhando na retenção do tráfego sem motivo aparente. Na minha frente, caminhava um cidadão de bermuda florida Richard's, boné e óculos escuros, acompanhado por duas belas moças sorridentes. Ao avistarem o trio, as motos ativaram brevemente a sirene, e fizeram uma manobra arrojada a fim de atravessar a pista. Dois meninos que casualmente passavam por ali de bicicleta lançaram-se ao chão no ato, aterrorizados, com as mãos na cabeça e repetindo que as magrelas haviam sido presenteadas pela mãe. Judiaria, nem era com eles: a comitiva só queria beijar, ops, apertar a mão do senhor à minha frente, que intuo fosse coronel, político ou pastor. Pegadinha da PM! Esses rapazes são mesmo impossíveis...!
Chegando a Ondina, onde costumo parar pra beber o côco do Lula, transcorria mais uma ação tipicamente local: mini-trio-elétrico-evangélico-político. Um vereador da cidade mobilizou carro de som, banda e fiéis para espalhar a mensagem de que só Jesus salva. Assim ele se escusa de resolver o que quer que seja, porque não é louco de interferir na seara do todo-poderoso. Não é genial?
Fico extasiada com a criatividade, com o poder de gerar alegria e com a qualidade de vida desta cidade. E que venha a Copa!
Apenas um porém: depois de tantas emoções, o resto de meu trajeto foi um verdadeiro tédio. A ver se outras partes da cidade ganharão a mesma atenção de nossa habilíssima administração pública

Aquele sobre racismo e dia da consciência negra

20 de novembro, dia da consciência negra, e minha quarta-feira foi uma parábola da ironia brasileira.

Fui de Salvador a São Paulo em um bate-e-volta. O motivo: um evento agitado por uma marca baiana de moda, onde a marca – também baiana – de chocolates com a qual eu trabalho fez uma participação. A função rolou na Oscar Freire, começando à tardinha e se esticando noite adentro.

Quando atinei que o feriado em São Paulo era devido a essa data específica, fiquei contrariada, com um misto de desconforto e culpa que me é familiar desde que a Bahia passou a ser minha casa. Em Salvador, uma das cidades mais negras do Brasil (se não a mais, não tenho esse dado), não foi feriado, enquanto que boa parte do sudeste parou por conta da memória de Zumbi dos Palmares.

Queria poder dizer que isso se deve ao fato de na minha atual cidade, a consciência negra ser tão desenvolvida e atuante, que a existência de uma data específica para celebrá-la seja uma redundância desnecessária, mas não posso forçar essa barra.

Logo que vim morar aqui, fui à Lavagem do Bonfim e me emocionei com o sincretismo entre os ritos católicos e africanos. Vi gente de todas as cores e classes caminhando lado a lado, dando as mãos, vestindo branco. Conheci brancos adeptos fervorosos do Candomblé, e acreditei que em todo o resto, para além da religião, a sociedade daqui fosse inclusiva, misturada, aberta. Não como duas culturas comunicantes, mas como uma cultura una, fruto de uma convivência histórica entre brancos e negros, já livres dos descalabros da escravidão e da pós-escravidão, que marcaram a infância do Brasil.

Não demorei muito a perceber o engano. Salvador segrega de forma explícita, cotidiana e socialmente aceita. No dia-a-dia, os passageiros espremidos dentro dos ônibus lotados são negros, assim como o motorista e o cobrador. Dentro dos carros, confortavelmente instalados, com ar-condicionado, vidros fechados, e no mais das vezes, sozinhos, uma esmagadora minoria branca. Na Bahia Marina, reduto soteropolitano para a elite que busca ver e ser vista, maîtres, garçons, cozinheiros, manobristas, faxineiros e babás uniformizadas (ugh!) são negros, com raríssimas exceções. Clientes nas mesas, com suas camisas cheias de números e escudos, com seus vestidos decotados e saltos vertiginosos, com seus óculos, relógios e joias reluzentes, com seus carros importados estacionados, esses são brancos, com exceções ainda mais raras. No Carnaval, quando os trios passam e são seguidos pela multidão, corredores brancos se formam, isolados pela (cretiníssima) corda. Do lado de fora, a pipoca é negra, e pula, e dança, mesmo que rechaçada por aqueles que não entendem o espírito de uma festa popular e democrática. As favelas são negras. A Vitória é branca. O Porto da Barra é negro. O Yacht Club é branco. O presídio é negro. As secretarias de governo são brancas. 80% da população é negra. 20% é branca.

Corta pro Brasil: no avião, na ida, li uma revista, dentre tantas na banca que anunciavam o que está na moda, o que é tendência, quem dá as cartas. A que eu escolhi, especificamente, se auto define como “registro geral do que interessa”. Páginas recheadas de “it pessoas”, criativas, empreendedoras, lindas, ricas. Contei o número de negros retratados: 3. Um deles, o filho do Amarildo, menino bonito com uma história triste, que pode mudar sua sorte por meio da carreira de modelo. Outra era a cantora americana Ciara em uma festa fora do país. E a terceira era uma modelo em anúncio de marca de óculos escuros. Três pessoas em centenas: uma com a chance de escapar da marginalização graças à beleza física; outra estrangeira e fotografada fora do Brasil; a última vendendo óculos escuros, sem passar qualquer mensagem significativa. Nenhuma em matéria de página inteira. Nenhuma nas fotos de eventos sociais disputados. Arrisco dizer que nenhuma também no time à frente da publicação.

No tal evento que justificou minha curta viagem, vi muita gente bonita e descolada, obras de arte, performances, roupas estilosas, música, chocolates. Fico animada quando uma função armada por baianos foge totalmente aos estereótipos da Bahia – que são tantos, e tão lamentavelmente reforçados pra onde quer que o turista olhe quando chega por aqui. Tenho a sorte de trabalhar em uma empresa totalmente fora desse padrão, e interagir com gente que faz moda/gastronomia/arte de uma forma diferente, com orgulho de ser baiano e fugindo do lugar comum. Vida longa aos fora da caixa de todas as querências! Mas diante do contexto da data e das minhas divagações ao longo da jornada, não posso deixar de observar que esse pessoal antenado e bem sucedido, que escreve a própria história e mostra a Bahia cool e moderna também teima em ser majoritariamente branco.

Falando em estereótipos, e constatando que não é só na Bahia que eles são constantemente reforçados, hoje li esse texto http://www.blogdomael.blog.br/2013/08/o-esquenta-o-programa-mais-racista-da.html, compartilhado por um amigo aqui no facebook. Escrito por um autor negro, aponta como um programa líder de audiência, na emissora mais assistida do país, presta um desserviço ao manter o negro exatamente nos papéis esperados e perpetuados pela sociedade, achando isso lindo e convencendo milhões de telespectadores. Não vejo o tal programa, mas não precisa assistir a um inteiro pra constatar que o autor do texto acerta na mosca.

Ironia é um recurso que eu aprecio, e do qual me utilizo com freqüência como recurso de linguagem. Mas essa variedade que acomete nosso país inteiro há séculos não tem a menor graça. Incomoda e faz pensar.

Aquele sobre raiva ser uma coisa boa

Anger management

Me digam se eu sou muito amarga por revirar os olhos (e o estômago) toda vez que alguém:
A) usa a expressão "muito amor" pra descrever qualquer coisa/situação/pessoa/comida;
B) comenta fotografias de mulheres, bebês e cachorros com "linda(o)" (ou "lindaaaaa(oooo)", ou "liiiinda(o)", ou "liiiiindaaaaa(oooo)!!!!!") depois de 7369 pessoas terem escrito exatamente a mesma coisa nos comentários anteriores;
C) se comunica com amigos usando exclusivamente palavras gentis, carinhosas e por vezes místicas, sem nenhuma sacanagenzinha no meio, mandando beijos de luz e fazendo coraçãozinho com a mão na despedida.
Sinto uma banalização de termos que me são caros, como amor e beleza (resultado da preguiça de se pensar em coisa mais interessante pra se dizer combinada à incapacidade absoluta de simplesmente não dizer nada), e como efeito colateral, uma aparente resolução coletiva de abafar o que há de não tão meigo, belo e cheio de frufrus dentro de nós mesmos.
Na condição de pavio historicamente curto, me sinto pessoalmente discriminada pela marginalização da raiva nesse contexto. Gente, raiva pode ser uma coisa boa, desde que compreendida e sabiamente empregada. É como o vento: uma ventorreia constante em dia de sol e praia torra a paciência de qualquer um, assim como um tufão violento gera caos e devastação que ninguém em sã consciência desejaria. Mas um pé de vento ocasional, que levante as folhas secas do chão, ou um minuano moderado que faça baterem as portas e janelas, isso só faz bem e é parte da natureza.
A raiva também é inerentemente humana, não deve ser ignorada, silenciada, e muito menos descartada como emoção de segunda classe. Claro que uma carranca constante é um pé no saco de qualquer um que conviva com o carrancudo em questão, mas não confunda raiva com mau humor. Uma criatura que ande com um taco de beisebol no carro e quebre os vidros de todo carro que lhe feche no trânsito tampouco é o tipo de amigo que todos queremos ter, mas hey, raiva e ataque histérico são coisas bem diferentes.
Falo da raiva que leva a cidadã de bem a mandar a puta que pariu o vizinho que ouve arrocha no último volume no sábado de manhã. Aquela raivinha que justifica um xingamento audível às pessoas que jogam lixo no chão e mijam nos muros das calçadas, infestando a cidade com fedor e imundície. A ira por trás de uma colocação direta e levemente agressiva no meio de uma conversa em que o interlocutor está claramente a fim de te enrolar. Esse tipo de coisa, sabe?
Só vejo vantagens. Falta clareza e honestidade nas comunicações. Todo mundo se esforça ao máximo pra ser fofo e querido sempre, e é impossível que todo mundo se sinta assim sempre. Além de não ser real e fazer todas as situações da vida parecerem o enredo de um episódio de ursinhos carinhosos, é chato pra caralho. Nesse mundo, sempre que eu falo um palavrão ou demonstro que não curti o que quer que seja, sou vista como uma leprosa, ou alguém que está a anos-luz de atingir a iluminação. Eu não quero atingir a porra da iluminação. Não foi isso que o Buda atingiu sentado debaixo da árvore e se alimentando de um grão de arroz por dia? Deus me livre! Eu amo a vida terrena, os prazeres mundanos, os vícios e virtudes da humanidade. Eu amo MUITO bacon (e cachaça), não peço desculpas por isso, e se não viro vegetariana/macrobiótica, não é por fraqueza, mas porque não vejo sentido algum em me privar do que me dá prazer. Pela mesma razão, me encanta tudo o que é humano, cru e verdadeiro, incluindo a raiva e seu poder de destruir para recriar, abalar o status quo, provocar mudança e rebuliço.
Sério mesmo, me digam se eu sou muito amarga por pensar assim. Não que isso vá fazer alguma diferença, claro.

Aquele sobre o coxinha new age

Fala-se muito na crise do macho. Com as mulheres galgando posições (profissionais, intelectuais, sociais, sexuais) em ritmo cada vez mais veloz, os homens estariam em conflito, sem saber direito como se conduzir neste mundo em mutação.
Um produto dessa crise é o coxinha new age, espécie que se multiplica nas grandes cidades. O coxinha new age, à primeira vista, parece um coxinha convencional, desses que abundam desde sempre em cidades como Nova York, São Paulo e Porto Alegre (pra citar só algumas): veste-se com as melhores labels (o que não implica dizer que se vista bem, atenção!); só escolhe lugares badalados (e faz a mais absoluta questão de pagar a conta); no mais das vezes é empreendedor e dono do próprio negócio (já leu tudo o que foi publicado sobre a família Rockfeller e declama trechos de "Sonho Grande") e tem uma necessaire maior do que a de muita miss.
Intimamente, porém, o coxinha new age sabe que se destaca de seu grupo de amigos, já que atingiu a iluminação, aprendendo que é possível ser coxinha e buscar o nirvana concomitantemente, sem que uma coisa exclua a outra. Ele encontrou a chave que dá acesso ao melhor dos dois mundos: ter todas as roupas e gadgets da última edição da GQ sem ser um boçal completo, e meditar por três meses em um ashram na Índia sem precisar andar de sandálias de couro, ecobag e barba de 3 semanas. Ele ouviu a voz que dizia: "Você pode ser o monge E o executivo!" E respondeu: "Yes, I can!"
Com toda essa bagagem, o coxinha sabe-se um partido ainda melhor do que ele já era nos tempos de just-coxinha. Tem a certeza de que qualquer mulher que cruze seu caminho será uma mulher de sorte, mesmo que passe com ele apenas uns breves instantes. Acredita que as it girls dos Jardins (ou do Moinhos de Vento, tanto faz) não perdem por esperar para conhecer esse combo em forma de golden boy espiritualizado.
Acontece que nem todas as mulheres estão preparadas para tamanha revolução. Tomemos como exemplo esta que vos escreve: sou uma mulher muito estranha ao universo do coxinha new age, faço esse mea culpa. Não vou à manicure há nem sei quanto tempo, nunca adquiri um secador de cabelo, tô pouco ligando pra grifes, como gordura animal sem parcimônia e detesto bebida doce. Por outro lado, não disponho de muito conteúdo metafísico, e tendo a embasar meus valores (e vícios) no fato de ser humana mesmo, sem muito mistério.
Agora o desajuste realmente perturbador: sou casada e assim pretendo continuar, mas saio com caras que não sejam o meu marido por acreditar, de verdade, que homens e mulheres podem ser amigos e se divertir juntos, sem que isso leve a sexo. Muito louco, né? Eu sei, mas sou assim e tenho bons amigos que insistem em me provar que eu devo sustentar esse delírio, além de um marido zero machista que não me enche o saco com ciúme besta.
Quando saio com meus amigos, rio, falo besteira, como, bebo, como gente normal. Como eles fazem com os outros amigos deles, e eu faço com minhas outras amigas. Mas devo confessar que entre as minhas amizades, o coxinha new age é um tipo exótico (como um pavão, só pra dar um exemplo), que merece cuidados especiais e toda uma cerimônia diferente.
Aprendi isso esses dias. Convidei um conhecido que se encaixa em toda a ficha técnica descrita acima pra gente se ver. Estou em São Paulo a trabalho, como estava quando conheci este senhor em NY. Soube pelo instagram que ele estava na cidade, e quis a companhia dele pra sair, rir, comer, beber e falar besteira. Co-mo gen-te nor-mal.
Ele sugeriu um restaurante desses que alguns paulistanos adoram pelo simples fato de ser franquia de uma casa nova-iorquina. Eu quis um lugar que tivesse porco no cardápio. Minha escolha venceu, yay.
Ele pediu um prato minimalista com agriões e mandioquinha. Eu pedi pé de... bem, porco. Eu ri um pouquinho dessa disparidade, me processem. Ele ficou puto com o garçom mal humorado que nos atendeu, mas em retrospecto, acho que não gostou foi da minha brincadeira. Ele pagou a conta toda quando eu fui ao banheiro. Eu fiquei constrangida com isso, porque sempre me vem à mente nessas horas o ditado ancestral que diz: Não existe almoço grátis. Jantar, muito menos.
Ele quis ir a um bar depois. Um daqueles lugares onde a hostess scaneia as pessoas na fila com o olhar, onde a carta de bebidas começa em R$30 e onde o Kanye West toparia gravar um clipe misógino e ostentador. (Pausa: gostei do bar. Lugar bonito, música boa, coquetelaria decente. Apenas digo que era um lugar posh-coxinha, nada de errado nisso. Pronto, podemos retomar.) Pedi um negroni, ele pediu green elyx, uma bebida com gosto de xampu infantil de maçã verde. Ri mais um pouquinho do paladar do cavalheiro.
É, talvez ele realmente não tenha gostado do meu senso de humor nessa noite. Foi ficando esquisito, um pouco agressivo nas palavras, o clima pesou. Falei que não estava gostando do rumo da prosa e que achava melhor a gente ir embora. Peguei os cartões de consumação para dessa vez, eu pagar a conta, mas ele arrancou os dois da minha mão e saiu enfurecido. Olhei em volta, só vi garçons e barmen, nenhum cliente restava. Esperei um pouquinho, mas o moço não voltava. Comecei a acreditar que ele pudesse ter ido embora e me deixado ali. De brabo, de bebum, de sei lá o quê. Nem me importei muito, pensei: amanhã ele liga sem lembrar direito o que se passou, a gente ri e fica tudo certo, sem stress, melhor assim, vou andando. E saí a pé pela rua escura, sozinha. Era perto de onde eu estou hospedada.
Chegando na porta, recebo uma ligação raivosa, de um homem com seu orgulho ferido por ter sido deixado pra trás diante de vários garçons e seguranças, que riram da cara dele, judiação! Me xingou das maiores baixarias que eu já ouvi nessa vida. Espumando de ira. E cobrando a $ que gastou pagando as duas contas, claro, porque eu mostrei ser um péssimo investimento. Pergunta se levou em consideração minha explicação (sim, me prestei a explicar pra esse ogro disfarçado!) de que eu julguei ter sido deixada sozinha naquele bar cheio de homens, e que por conta disso tinha caminhado - sozinha! - por uma rua deserta, e que nem por isso estava dando faniquito histérico. O chiliquento não quis saber, a honra dele fora abalada e "eu não merecia mais o respeito" que ele nutria por mim. Poxa, que grande perda, eu tinha conquistado o respeito dessa alma superior, e agora perdia, jogava no lixo essa alta honraria merecida por tão poucos.
Fiquei entre pasma, magoada e compadecida. Apesar do meu notório pavio curto, tentei apaziguar de todas as formas, e não revidei nenhuma ofensa. Já tive brigas homéricas nessa vida, mas sempre com gente que eu conhecia bem. Ou no trânsito. Nunca uma pessoa com quem eu havia estado duas vezes apenas. Nesses casos, sentindo qualquer dissonância, sempre achei que o justo era cada um tomar seu rumo e romper-se o contato. Me assustei quado o discípulo de Richard Branson/Gandhi se comportou como um homem das cavernas tomado pelo ódio.
Logo senti pena, no minuto em que entendi a crise do macho tão devastadora e tristemente corriqueira em nossos dias: eu escolhi o restaurante. Eu pedi o prato e a bebida de adulto. Eu não dou a mínima pro fato de ele ter grana. Eu não criei caso por conta do desentendimento no bar. Eu saí de cena discretamente. Eu não estava atrás de romance, nem de alguém que pagasse minha conta, só queria me divertir. Que tipo de protagonismo restou pra ele? Só passar o cartão. Se eu tivesse percebido antes que era tudo um jogo de poder, teria ficado em casa vendo Amor à Vida e comendo um sanduba.
No dia seguinte, apaguei as mensagens grotescas, e com isso apaguei também os dados bancários do rapaz. Coxinha new age, se você estiver lendo, mande de novo o número da conta, por favor. Faço questão de lhe ressarcir. Isso se minha fama de sirigaita caloteira já não estiver na boca do povo, claro, porque se for esse o caso, não pagarei nem um centavo.